domingo, 20 de dezembro de 2009

“NÃO PODES USAR A MINHA SOMBRA!!!”

Ouvi, em gritos ao lado na esplanada de um qualquer café…não que seja bisbilhoteiro, mas para mim que sou poeta é frase a escrever desde logo. A vida é o espelho que queremos que seja dos nossos amores, particularidades brutas e loucuras. E de loucos percebo eu, acreditem. Mas isso agora…

Bem, a sombra. Não me estou aqui a referir ao mancha negra, herói esquecido dos livros de quadradinhos, mas sombra, projectada pelo sol. O casal discutia, terminavam parece; ela provavelmente tinha-o levado a tomar café para minimizar o desmando, mas eis que o poeta sentiu a dor que se lhe começou a declamar nas entranhas e a coisa transbordou.

Vá, sejam os primeiros a gozar! Pois, a natureza social assim nos impele, mas a mim não. Eu, colector de momentos reais em declínio absoluto, sei o quão raro cada vez mais é o verdadeiro sentimento. A coisa camoniana, o amor assim mesmo mesmo verdadeiro que une dois seres até ao fim da vida. Logo, colecto.

A berraria continuou e a plateia a tentar perceber qual a razão porque o porco se debatia na cadre, o sangue a jorrar, e eis que…

“NÃO PODES USAR A MINHA SOMBRA!!!”

Que raio! Eu, já misto sarcasmo e escondendo interesse, grito para lá:
Mas qual sombra pá?

Ao que o porco, nos últimos estertores da sua curta vida, declama:

“Ela usou a minha sombra na capa de um livro! Não só acabou comigo como me quer roubar a alma!”

Passa uma rajada fria e estremecemos todos cá dentro, magoados ante a tragédia.
Eu levantei-me. Uma pessoa que estava atrás de mim também. Depois, outra.

Sem pensar, quando dei por mim, estava ao lado deles, a protagonista também lavada em lágrimas, e disparo:

"Ouve lá, mas que espécie de ser humano és tu?!"

A protagonista olha para mim assustada, começa a recuar e só então, ao olhar para trás, vejo que toda a esplanada estava por detrás de mim, cerca de umas 15 pessoas.

Olhos presos na diva que nem pregos, senti instantaneamente que todos aqueles, como agora vós, se lembraram da dor do perder, do que é sentir que alguém nos rouba a alma. As caras não indiciavam nada de bom, zombies por um segundo.
Temi e com a consciência que podia ter começado um movimento de grupo, permaneci entre eles e ela. Ninguém deslocou um músculo enquanto passava outra rajada de vento frio.

De repente, a protagonista partiu. Não a correr mas apressada.
O poeta destroçado também. Cara vermelha, vergonha de sofrimento e expressão de dor que marcou a minha alma.

O momento passou. Os outros de repente reagem como que a sair de um transe, entabulam desculpas em voz baixa do incómodo de estarem muito perto uns dos outros e cedo toda a gente paga e desaparece.

Eu sento-me, extenuado de emoções. Sei que a memória passa, que com o que me fizeram, convivi sempre eu muito bem. É o mal que fazemos aos outros, essa culpa que corrói no mesmo sitio onde se gera o amor, que tarda nas memórias. Os índios diziam que quando se lhe tirava a foto era-lhes roubada a alma e todas as primeiras câmaras eram destruídas. Será isso que ele tanto chorava? Não acredito. Acredito que como qualquer um de nós, construiu um grande castelo, baseado ou não em realidades e o coração não aguentou na altura, ser furado pela faca do açougueiro.

É que dói que se farta.

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