sábado, 26 de dezembro de 2009

Eram exactamente 06:14 quando…

Alguns textos aparecem dentro de nós e as frases voam. Fazem pequenas aves, até que se vão juntando mais e mais aves-frase, até que sai a voar um belo bando. Assim foi este, que já voa por aqui fora faz uns dias…

Eram exactamente 06:14 quando…

Eram exactamente 06:14 da manhã quando ela actuou. Após quatro dias seguidos de sofrimento d’alma, tentando apanhar do chão cacos de um espelho agora em perpétuo acto de estilhaçar, ela actuou.

O corpo seco, sem comida, havia tremido de frio há demasiado tempo. Frio, sabia ela, da falta de comida, mas pior, de falta d’alma. Essa, na verdade, era a mais preocupante mas primeiro o básico, o pilar depois o resto, assim pensava.
Deu sinal ao corpo que tinha chegado ao fim. Qual drogado de repente acorda dos seus torpores, enviou ao fim do corpo a noticia que tinha terminado. Que agora quem mandava ali era ela e que não tivessem mais medo, pois que a sua mãe estava ali para eles.

Depois desse sinal, fê-lo dar uma volta rápida sobre si próprio e ir despachar o que não havia para despachar. Fê-lo sentir a dor do corpo vazio, dentro do qual as lágrimas de tristeza faziam eco. Ela tinha-se fartado de as ouvir a cair para dentro, qual tortura da água, farta de ver os órgãos a secarem, pois que a toda a água dentro dele tinha sido dada ordem de partida. Na altura, era necessário, pensou. A dor não pode permanecer dentro do corpo, senão envenena-o. A lágrima transporta a dor para fora, qual oferenda ao esquecimento!
Ela sabia que era grave, não tão grave quanto poderia ter sido se mais tarde, mas mesmo assim muito grave. O encantamento que antes ele lançara às outras, tinha agora sido respondido na mesma moeda, e ela pressentia que era forte, muito. Não pensou mais nisso e pôs-se ao trabalho.

Fê-lo sentir dor, essa coisa maravilhosa da vida. Ele teve um esgar e ela soube imediatamente que havia ganho. Colocou-lhe no pensamento a ideia da comida e ele comeu. Nos primeiros dias, pouco. Primeiro uma torrada, ao almoço uma sopa, ao jantar meio prato. Tudo o mais natural possível, o corpo é um templo que devemos respeitar e amar.

A greve d’alma é muito semelhante à de fome, os seus motivos bem mais importantes: é uma luta por nós, pelo que sentimos e acreditamos.

A mãe terra, o instinto de sobrevivência, a biologia é a fome da célula que não tem comida, do ar que precisa de entrar, do sangue que corre com força. É o nosso pilar, a fonte da nossa força de olhar, a afirmação que pomos no mundo.
Quando ela já não funciona, estamos perdidos. Somos animais profundamente biológicos, feitos de carne e sangue, instinto e alma. Quando não temos algum destes, morremos sem dúvida.

Fê-lo olhar para o relógio. Eram exactamente 06:14, a hora em que ele sabia que ela tinha chegado para o salvar. Finalmente.

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